Soubemos em meados de Dezembro que o Pai tinha um cancro nas vias linfáticas, sem tratamento. Tinha acabado de fazer 81, o coração já lhe tinha pregado dois sustos e a memória às vezes tinha uns bugs. Depois do choque do diagnóstico, juntámos todos os apoios para que pudesse ficar sempre em casa. Claro que o apoio maior e incansável foi a Mãe, sua grande cuidadora há 53 anos. Mas vários braços e corações se juntaram para que estivesse ainda mais acompanhado e com todo o conforto. Ainda conseguimos que conhecesse o João Pedro, nono neto. Morreu este sábado, em casa, sereno e rodeado da família - um luxo reservado a poucos.
O Pai descobriu a Fé a meio da vida. Batizou-se pouco antes de casar, ainda com uma adesão parcial. Anos depois, em Fátima, teve um súbito desejo de se confessar e fazer um caminho de joelhos no Santuário - o Pai sempre foi racional e crítico de excessos religiosos, mas há momentos espantosos. No regresso, pediu ao pároco da Costa que lhe desse catequese, e o Pe. Mário trocou-lhe as voltas e desafiou-o antes a ser catequista. Nas décadas seguintes, deu catequese, preparou casais para o casamento, orientou grupos de jovens, até entrou num teatro de Páscoa (das minhas memórias mais antigas). E passava horas, noite dentro, fechado no quarto a ler toda a exegese sobre cada versículo da Bíblia. Nos minutos antes de morrer, repetiu várias vezes a palavra "Fé". E este testemunho vêm em primeiro lugar no extenso rol do que lhe devemos.
Um par de horas depois, voei da Costa para o Campo Grande, onde a nossa Luísa ia receber a sua primeira Bíblia na "Festa da Palavra" da catequese, que acabou por ser a primeira missa por alma do avô. "O Pai era um apaixonado pela Bíblia; tens de estar com a tua filha e despertar-lhe esse mesmo amor". A Mãe sempre foi boa a lembrar-me das prioridades.
Nestes últimos meses, além das visitas mais frequentes, acompanhei-o em dois momentos importantes. Levei-o pelo braço, com dificuldade, até à mesa de voto - onde não podia faltar, não por entusiasmo nos candidatos, mas por ter um dever a cumprir (nunca foi de ter medo). E a sua última confissão com um dos seus amigos jesuítas do Pragal foi dentro do meu carro (comigo fora, claro).
Cara de olhar para os netos |
Há uns meses fiz quarenta anos e teimei em fazer uma festa maior. Tinha o feeling de que o tempo para estarmos todos juntos começava a escassear, e queria que os meus amigos o revissem ou conhecessem. O Pai não era muito de festas, mas sempre foi alegre e conversador, e assim esteve nesse dia. Aposto que o Pai nunca tinha ido a um concerto pop, mas vou guardar a memória de o ver a bater palmas acima da cabeça ao ritmo do Miguel Araújo.
3 comentários:
O Vosso pai era uma pessoa muito especial! Ainda hoje recordo com muito carinho as vezes em que fiquei em Vossa casa, quando andava na faculdade com a Isabel. Era uma família muito divertida e muito calma, a contracenar com os dias de hoje. Considero-me uma pessoa muito afortunada por ter partilhado aqueles momentos convosco e ter mantido o contacto até hoje. Sempre que me encontrava com o Sr. Carlos ele era brincalhão e muito simpático, com aquele seu tom de voz muito calmo. Muita força para toda a família, em especial para a esposa e irmã. Ana Barreto Albuquerque
Que texto lindo e comovente. Os meus sentimentos a toda a linda família que vocês sim. E que alegria é saber que o fim chegou com Fé e tranquilamente em casa. É, de facto, um tesouro reservado a poucos. Certamente que ele o mereceu. Susana Duarte
Para quem é crente a fé, não libertando da morte, suaviza o sofrimento. Para mim, que não sou crente, só existe uma vida para além da morte: a que vive nas memórias de quem amou e foi amado no universo de quem partiu. O pai soube construir bem as raízes dessas memórias e, assim, terá, seguramente, uma longa vida para além da sua morte!
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