Fonte
No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.
Herberto Hélder
A minha Mãe faz 75 anos.
Maria Isabel, como a mãe que cegara antes de a ver nascer e que perdeu aos sete anos. Perder é uma forma de dizer, porque na comunhão dos santos só há ganhos e o modelo da Avó foi e é bem presente.
Primeira menina depois de seis rapazes, ainda teve mais dez irmãos. Daqui resultaram 61 sobrinhos, 83 sobrinhos-netos e uns quantos sobrinhos-bisnetos. Primos também não faltam, porque o seu avô paterno já tinha sido pioneiro da prole "chapa 17" e pelo lado materno também não eram poucos. Esta abundância familiar, que não se esgota nos números, foi sobretudo uma escola de partilha e de atenção multiplicada, mais do que dividida. E ajudou a exercitar a proeza de saber de cor as datas de nascimento de meio mundo.
Estudou para professora primária na Veneza portuguesa. Ensinou três anos no Minho dos anos 60 e das sopas de cavalo cansado. Os pais iam à escola dar-lhe luz verde para bater nos filhos, mas não ia nessa conversa. Consta que deixou boas memórias, mas fartou-se e trocou Famalicão por Lisboa.
Por cá, conheceu um engenheiro ribatejano, namoraram 9 meses e passado outro tanto de terem casado nascia a primogénita. Dois anos depois, vinha um rapaz. Foi preciso esperar mais dez para vir a obra-pr... o benjamim. E "colocou-se na combustão dos filhos", a tempo inteiro. O tempo todo para nós, querem maior luxo? Por isso pude ficar em casa até aos cinco anos. Por isso pude gozar livremente tantas tardes na infância, sem outra "ocupação de tempos livres" que não fazer aquilo que bem me apetecia.
Estando disponível para nós a 100%, nunca nos prendeu. Sempre pudemos ir sozinhos para a escola, escolher as actividades e os estudos de que gostávamos, amar quem escolhemos, sem interferências. Nos anos que vivi em Londres, nunca fez da distância um drama. O horizonte das sua ambição para nós não é "deste mundo".
Sempre nos mostrou que a Fé é o mais importante. Foi catequista, orientou grupo de jovens, preparou noivos, esteve em grupos de casais. Fez amizade nos vários mosteiros onde passávamos férias e pela nossa sala de jantar passaram muitos padres. Quando foi possível, conquistou o seu cantinho em Fátima, onde sempre foi amiúde.
Não gosta especialmente de cozinhar e já delegou nos filhos o papel de reunir a família à mesa, mas continua a brindar-nos com o melhor bolo do mundo. O excesso de açúcar nunca foi drama lá em casa, ou não tivesse o próprio Abade de Priscos andado pela cozinha dos meus bisavós. Nunca acabava um doce sem me chamar para rapar o tacho, com o mesmo ar maroto com que hoje enche os netos de biscoitos.
Aos 75, continua fresca. Atenta a todos, agora ainda com maior alcance pela janela do Facebook. A cuidar do marido, adaptando-se ao seu ritmo. A cuidar dos netos sempre que precisamos. E a confiar-nos todos os dias nas mãos de Deus. Assim Ele a mantenha.
A minha Mãe faz anos. Mas a maior felicidade é nossa.