domingo, 18 de abril de 2021

Pai

Soubemos em meados de Dezembro que o Pai tinha um cancro nas vias linfáticas, sem tratamento. Tinha acabado de fazer 81, o coração já lhe tinha pregado dois sustos e a memória às vezes tinha uns bugs. Depois do choque do diagnóstico, juntámos todos os apoios para que pudesse ficar sempre em casa. Claro que o apoio maior e incansável foi a Mãe, sua grande cuidadora há 53 anos. Mas vários braços e corações se juntaram para que estivesse ainda mais acompanhado e com todo o conforto. Ainda conseguimos que conhecesse o João Pedro, nono neto. Morreu este sábado, em casa, sereno e rodeado da família - um luxo reservado a poucos.

O Pai descobriu a Fé a meio da vida. Batizou-se pouco antes de casar, ainda com uma adesão parcial. Anos depois, em Fátima, teve um súbito desejo de se confessar e fazer um caminho de joelhos no Santuário - o Pai sempre foi racional e crítico de excessos religiosos, mas há momentos espantosos. No regresso, pediu ao pároco da Costa que lhe desse catequese, e o Pe. Mário trocou-lhe as voltas e desafiou-o antes a ser catequista. Nas décadas seguintes, deu catequese, preparou casais para o casamento, orientou grupos de jovens, até entrou num teatro de Páscoa (das minhas memórias mais antigas). E passava horas, noite dentro, fechado no quarto a ler toda a exegese sobre cada versículo da Bíblia. Nos minutos antes de morrer, repetiu várias vezes a palavra "Fé". E este testemunho vêm em primeiro lugar no extenso rol do que lhe devemos. 

Um par de horas depois, voei da Costa para o Campo Grande, onde a nossa Luísa ia receber a sua primeira Bíblia na "Festa da Palavra" da catequese, que acabou por ser a primeira missa por alma do avô. "O Pai era um apaixonado pela Bíblia; tens de estar com a tua filha e despertar-lhe esse mesmo amor". A Mãe sempre foi boa a lembrar-me das prioridades. 

Nestes últimos meses, além das visitas mais frequentes, acompanhei-o em dois momentos importantes. Levei-o pelo braço, com dificuldade, até à mesa de voto - onde não podia faltar, não por entusiasmo nos candidatos, mas por ter um dever a cumprir (nunca foi de ter medo). E a sua última confissão com um dos seus amigos jesuítas do Pragal foi dentro do meu carro (comigo fora, claro).

Cara de olhar para os netos

Há uns meses fiz quarenta anos e teimei em fazer uma festa maior. Tinha o feeling de que o tempo para estarmos todos juntos começava a escassear, e queria que os meus amigos o revissem ou conhecessem. O Pai não era muito de festas, mas sempre foi alegre e conversador, e assim esteve nesse dia. Aposto que o Pai nunca tinha ido a um concerto pop, mas vou guardar a memória de o ver a bater palmas acima da cabeça ao ritmo do Miguel Araújo.


Confiamos que o Pai já esteja no eterno encontro face a face, onde um dia nos encontraremos. E nós, que ainda estamos aqui, havemos de cuidar uns dos outros - muito em especial da sua mulher e da sua irmã - com a mesma atenção ao detalhe do Senhor Engenheiro.